quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

O JARDINEIRO QUE VESTIA PRETO

Sempre que penso que chegou a hora de cortar a grama ou mexer no jardim da minha casa, ele aparecia no portão, de forma inesperada, sem avisar, pronto para fazer o serviço de jardinagem.
            Jacinto é um homem estranho, veste-se sempre e completamente de preto, das longas botas ao chapéu, mesmo nos dias de sol escaldante de verão.
            Já o vi algumas vezes perambulando calmamente pelas ruas do Centro Histórico de Curitiba, e também pelo Calçadão da Rua XV, como se estivesse observando o comportamento da cidade e dos passantes, mas sempre com a mesma roupa.
            Desde que me conheço por gente, conheço esse homem e ele não mudou em nada no passar das décadas. A mesma fisionomia, o mesmo andar, o mesmo olhar e a mesma roupa.
            No trabalho, o homem parece uma máquina incansável, que quase não para. Faz três pausas durante o trabalho. Uma para o almoço e outras duas para os lanches da manhã e da tarde, que ganha dos proprietários das casas em que trabalha. No almoço, são dois ou três pratos fartos de comida. Cheguei a pensar que Jacinto tem dois estômagos, pois impossível para um homem daquele tamanho, de porte médio e magro, comer daquele jeito. Lá pelas três da tarde, ele pede seu café com não menos que quatro pães. O café é tomado diretamente do bule, sem cerimônia alguma e, ai de mim, se o café não estiver bem doce.
            Penso que ele não é certo do juízo. Fala umas coisas estranhas. Repete sempre que viaja por todo o Paraná a pé. Realmente eu já cheguei a vê-lo andando pela rodovia entre Curitiba e Palmeira e parei para oferecer uma carona, mas ele não me deu atenção, como se eu não existisse.
            Durante os seus serviços de jardinagem, fica falando que sabe a idade de todas as pessoas que conhece, e nunca dá menos de cem anos para quem quer que seja. Esse jacinto só pode ser doido mesmo. Para uma criança de cinco anos, filha de um conhecido que sempre dá trabalho ao jardineiro, ele afirma e insiste que ela tem cento e vinte e seis anos.
            A matemática dele é um absurdo e o preço que cobra nem se fala. O cara trabalha feito um touro, deixa um enorme jardim impecável e cobra valores que praticamente não dariam nem para um almoço. Certa vez, ele queria me cobrar só quinze reais pelo serviço, e acabei dando cem, por tudo o que fez e caprichou no meu quintal. Outra vez então, três meses depois, quis me cobrar dez reais, dizendo que precisou reajustar o seu preço.
            O que pensar de um homem desse? O fato é que sempre pago o preço justo e ainda dou de comer a esse maluco.
            Esses tempos, sentindo de perto o cheiro do homem e a sujeira de suas roupas pretas, ofereci algumas peças de roupas a ele, mas não aceitou porque não gostou das cores. Só usa preto mesmo.
            Uma vez me falou que já trabalhou e morou em todas as cidades do Paraná e até lá pelas bandas de São Paulo, mas eu não dou bola para o que esse doido me diz.
            Eu gosto do resultado do trabalho dele. Deixo que ele fale o que quiser, pois eu até me divirto um bocado com isso. Ele ajuda com as suas maluquices a deixar o meu dia mais alegre. Chego a dar umas belas gargalhadas, mas ele se irrita com isso, dando a impressão de que está falando sério das suas doideiras.
            O sujeito tem uma cara amarrada, mas no fundo, tem um bom coração. O que me assusta um pouco é a reação dos cães quando ele se aproxima. Os bichos se escondem agachados nos cantos e gemem de medo de Jacinto, mas acho que é pelo jeitão do cara, das suas roupas e do grande chapéu que faz sombra em seus olhos, o que faz com que os cães fiquem amedrontados, penso eu.
            Certa vez, eu olhei para o jardim, e novamente vi que estava na hora de cortar a grama, trocar algumas flores e podar alguns galhos de árvores. Não tinha terminado de pensar e já percebi Jacinto plantado no portão, pronto para iniciar o trabalho. Já cheguei a ter medo de que esse homem tenha o poder de ler pensamentos.
            Naquele dia, trabalhou até por voltadas dez horas e me pediu seu café. Lá pelo meio dia, forneci seu almoço e lá foram duas montanhas de comida, e eu fico feliz por vê-lo comer bem. Ele passou a mão na barriga em sinal de satisfação, não descansou nem por cinco minutos e voltou ao serviço. Próximo das quatro horas me pediu seu café da tarde. Dei uma reforçada no lanche. Forneci queijo, biscoitos e alguns pedaços de bolo de fubá. Nada sobrou do que dei a ele.
            Jacinto trabalhou até umas seis da tarde e deixou tudo muito em ordem. Talvez tenha sido o melhor trabalho que ele fez no jardim.
Perguntei a ele o quanto eu deveria pagar, esperando sempre uma surpresa no valor anunciado por ele. Com sotaque caboclo, o homem me respondeu dizendo:
- “O sinhô pode dá uns cinqüenta centavo que tá bão”. “Dá pá cumê a semana intera com isso”.
Me virei e segui para pegar o dinheiro na casa, não tendo como não rir das doideiras que ele fala.
Enquanto o jardineiro foi juntando seus apetrechos, entrei na cozinha da casa para pegar o dinheiro no valor justo de cem reais. Voltei para o jardim e percebi que Jacinto já havia ido embora. Não esperou pelo pagamento.
Naquela noite passei em claro pensando no jardineiro, no que teria para comer e como fazia para comprar o que precisava, visto que, não tinha ideia alguma de valores. Meu coração ficou apertado pensando em como ele fazia para sobreviver.
Ao amanhecer, passei no supermercado, fiz uma boa compra para ele ter o que comer, e procurei pela sua casa, com as dicas de um vizinho que sabia onde ele morava.
Jacinto morava em um pequeno rancho no subúrbio de Curitiba, à beira de um córrego malcheiroso, um verdadeiro barraco feito com retalhos de madeira e outros materiais que foram úteis para fechar as frestas da casa. Bati palmas e fui recepcionado por ele, vestido como sempre, todo de preto. Desconfiado, convidou-me a entrar e dei a ele a compra que fiz.
Disse a ele que eu estava também trazendo o dinheiro no valor que achava justo.
O jardineiro ficou pensativo, e não querendo pegar o valor, somente a compra, deu uma suspirada como quem se preocupa com a situação, mas aceitou. Apanhou debaixo da velha cama, uma caixa grande, onde havia uma grande quantidade de dinheiro. Eram notas de real, cruzados novos, cruzeiro e réis, que ele fez questão que eu pegasse para ver. Disse que esse dinheiro todo era dos pagamentos recebidos pelos seus serviços de jardineiro. Jamais havia utilizado um mísero tostão do que ganhara de pagamento de seus serviços em toda a sua vida.
Confesso que fiquei atônito e com medo do homem naquele momento. O que me chamou a atenção, muito mais do que o acúmulo de notas antigas, daquelas dignas de estarem em um museu, foi um cheque nominal destinado a ele, assinado por um tal Capitão Leôncio, com data de 25 de setembro de 1910, quase cento e dez anos atrás.
Aquele dia em que estive na sua casa, foi a última vez que vi aquele homem misterioso.
A última notícia que tive de Jacinto, segundo um conhecido meu, é que ele teria sido visto perambulando por uma rodovia próxima a Maringá, com seus apetrechos de jardinagem, possivelmente a procura de um jardim para cuidar, todo vestido de preto.

Autor:
Foto: Elizeu Eduardo Czekalski
Leandro Ditzel

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